Uma das maiores barreiras em qualquer tipo de estudo é a linguagem: compreender os ensinamentos e expressar os conceitos elaborados. No estudo magístico, essa barreira se torna um pouco maior devido à linguagem simbólica. E quando estudamos sistemas magísticos oriundos de culturas e países diferentes dos quais estamos inseridos, ficamos à mercê de tradutores que, na maioria das vezes, não possuem a menor compreensão daquilo que estão traduzindo.
Já comentei várias vezes sobre a tradução errada dos Cinco “Elementos” Chineses, que não são elementos, mas movimentos, e que eles não possuem equivalência com os Quatro Elementos Ocidentais. Outra tradução errada que insistem é com a palavra Kami.
A melhor tradução para Kami é a palavra “espírito”, mas isso é uma simplificação de um conceito complexo – o Kami pode ser um elemento da paisagem ou uma força da natureza.
Os Kami estão perto de seres humanos e respondem às suas orações. Eles podem influenciar o curso das forças naturais e os acontecimentos humanos. A crença xintoísta possui diversos conceitos do que seja Kami. Embora estes conceitos estejam intimamente relacionados, eles não são totalmente equivalentes.
Kami pode se referir a um tipo de entidade específica, ou a uma qualidade que outros seres podem desenvolver, isto é, a características particulares a tipo de entidade específica, mas que são encontradas em outros tipos de seres.
Nesse ponto, convém lembrar que a palavra Kami, palavra japonesa, é escrita com o mesmo kanji usado para escrever Shen, palavra chinesa que possui, obviamente, o mesmo significado (espírito), e é usada para designar um dos Três Tesouros da Vida do Tao. Assim, todas as criaturas possuem kami, mas somente aquelas que desenvolvem e demonstram a sua natureza kami de modo destacado é que podem ser referidas como kami.
No entanto, nem todos os Kami são bons. Existem kamis maus, os quais são chamados de Majin. Aqui, adentramos a um ponto nebuloso do conceito de Kami: Kami não é Deus.
Os problemas começaram no início do século XIX, quando iniciaram as traduções da Bíblia para o japonês. Na falta de uma expressão melhor na língua japonesa para expressar o conceito cristão de Deus, os tradutores escolheram a palavra Kami.
Isso causou uma grande confusão até mesmo entre os próprios japoneses: o teólogo xintoísta Kenji Ueda, em 1900, estimou que 65% dos estudantes ingressantes na faculdade de teologia associavam o termo Kami com alguma versão do conceito ocidental de um ser supremo. Se em um século uma tradução mal elaborada da Bíblia Cristã para o japonês causou esse tipo de problema entre os japoneses, o que dirá traduções do hebraico e do grego para outras línguas indo-européias em mais de 2.000 anos?
Os Kamis, como entidades específicas, são frequentemente descritos como seres divinos ou deuses, mas os Kamis não são parecidos com os deuses de outras religiões monoteístas: eles não são onipotentes e não são perfeitos. Eles podem se apresentar como elementos da natureza, como paisagens, montanhas, lagos e oceanos; e como as forças da própria natureza, tais como tempestades e terremotos.
Além desses, os seres humanos que tiveram uma vida notável, repleta de realizações, que desenvolveram seu Shen e alcançaram certa evolução espiritual são chamados de Kami. Os espíritos dos antepassados, cultuados e tratados como protetores da egrégora familiar, também adquirem o “status” de Kami.
A explicação do conceito de Kami está longe de ser esgotada. Já diziam os xintoístas que os seres humanos são incapazes de formar um verdadeiro entendimento de sua natureza. Realmente, torna-se complicado materializar em palavras os conceitos imateriais, e mais complicado ainda traduzi-los de um idioma para o outro e de uma cultura para a outra.
Mais um artigo lapidar, trabalhado e muito bem elaborado!
Sabe que nos vai deixar mal-acostumados, não ?
Eu tenho me apoiado em artigos do François Jullien, para melhor traduzir muitos dos conceitos do pensamento chinês, se ainda não tem nenhum livro dele, valem muito à pena!
Mas o ponto principal, é exatamente este: Não tem como copiar e colar conceitos de outras culturas, sem conhecer as bases e diferenças entre o pensamento entre elas.
Tao Te King, I Ching, a Arte da Guerra… Todos desinseridos de seu contexto, se tornam obras deformadas, estranhas.
Tem estudado ideogramas por onde, AK ?
A.K. Exatamente. Culturas diferentes, pensamentos, simbologias, linguagens e conceitos diferentes. Os próprios idiomas não são traduzíveis ipsis litteris entre si. Quem trabalha com traduções sabe que não traduzimos palavras, mas ideias e conceitos. E se não soubermos compreender os conceitos originários da cultura a qual estamos trabalhando e da cultura para qual nós estamos nos dirigindo, não conseguiremos fazer a tradução das obras de um idioma para o outro.
Estudo ideogramas através de dicionários etimológicos de kanji chinês e japonês.
Sensacional. Realmente a questão da linguagem dentre as diversas culturas é um enorme problema para o entendimento, e quem diz isso, são os Kami…
Abs
raph
Muito bom o artigo.
Será que vc poderia dar um exemplo de Majin, ou falar mais sobre eles ? eu só conheço o Majin Boo lol
A.K. Majin é um termo genérico para designar entidades do mesmo tipo essencial de um kami, mas que fazem maldades. Aqui, vale lembrar que os kamis também possuem uma “hierarquia”, recebendo nomes e títulos. O panteão xintoísta que nós conhecemos, os kamis são tratados por “Oomikami” ou por “no Mikoto”, títulos de alta hierarquia. Kamis maus são de “baixa hierarquia”, logo, não recebem nem mesmo nomes. Os relatos apenas os tratam por majin, ou até mesmo por oni.
Gostei demais do texto!
A primeira vez que ouvi falar sobre Kami , a pessoa queria saber se era uma egrégora , devido ao fato de que uma amiga tinha dito que o Kami do xintoísmo era mais poderoso que o Kami da Seicho-no-Ie , eu fiquei meio perdido , pesquisei um pouco e reparei que o conceito de kami não tinha muita relação com egrégoras…
Ainda assim pena que não tinha encontrado seu texto antes rsrsrs
Olá Bruna muito boa sua explanação.Gostaria de saber se o conceito cristão de Deus seria o equivalente a Kami Sama (honorável Espirito), se não a que significa?
A.K. Utilizam a expressão Kami Sama para se referir ao Deus cristão no Japão por causa dessa questão levantada no post. Mas Kami e Deus são conceitos diferentes. Basta lembrar disso que não haverá problemas.
Muito interessante o texto. Correndo o risco de dizer alguma besteira, e desculpe-me se esse for o caso, lembrei-me que o conceito de Kami assemelha-se de certa forma ao conceito dos orixás, ou seja, forças da natureza personificadas, às quais se pode recorrer.
Interessante, pois sou Kamimura.
“Os Kami estão perto de seres humanos e respondem às suas orações. Eles podem influenciar o curso das forças naturais e os acontecimentos humanos. (…) Eles podem se apresentar como elementos da natureza, como paisagens, montanhas, lagos e oceanos; e como as forças da própria natureza, tais como tempestades e terremotos.”
Kuwan-Sama, analisando o procedimento mágico de várias épocas da Humanidade, nas mais diversas culturas, ocorreram seres que interferiam nos acontecimentos humanos.
E alguns pediam algo em troca,
Como sangue (Sumérios, Astecas) etc. etc. etc.
(E qual brasileiro nunca ouviu falar dos “trabalhos” de terreiro?)
“Associados à Natureza… Oceanos… (pensei em Iemanjá) Tempestades” (pensei em Iansã)…
KS, na tua opinião: os Kami poderiam ser as mesmas entidades que estiveram entre os Sumérios, os Egípcios, os Gregos, os Astecas, os Chineses, na Índia, no Himalaia, e atualmente, nessa nossa época da Humanidade, se apresentando como os vários grupos do Povo de Aruanda?
Eu não estou fazendo metáforas nem analogias nem sincretismo, eles poderiam ser exatamente os mesmos seres de outrora (apenas se apresentando com outros nomes), sempre convivendo com a Humanidade, nossos eternos vizinhos dimensionais, não importando o quanto mude nossa cultura?
Paz Infinita.
A.K. Da mesma forma que nós podemos fazer parte de mais de uma egrégora, acredito que eles também possam.
Gostei muito da sua explicação sobre o Xintoísmo, gostaria de saber qual é o significado dos objetos que estão amarrados nas árvores?
A.K. É um sinal do sagrado, da divindade. Aquelas árvores são sagradas.
Olá, ha quanto tempo não entro aqui. Saudades ! E tudo começou com o Matamune o Nekomata (Shaman King). Levando em conta sua explicação na parte em que você diz “…os seres humanos que tiveram uma vida notável, repleta de realizações, que desenvolveram seu Shen e alcançaram certa evolução espiritual são chamados de Kami.”. Os Santos seriam um bom exemplo ?
Aoi Kuwan – Não, porque os santos só conseguem esse título após o processo de canonização da Igreja Católica, que envolve a comprovação de virtude ou martírio, e de milagres realizados pelo dito santo após a sua morte. Muitos santos católicos foram mártires apenas, e não há como determinar se todos os santos católicos efetivamente desenvolveram o shen para alcançar o status de kami.
Descobri seu site por acaso, mas estou gostando muito ! Informação fascinante e pelo jeito como responde aos comentários, muito bem embasado ! Abraços